Semicerrei os olhos quando entrei na Tenda do Comandante. Estava negra como o breu, e os meus olhos teimavam em não se acostumar à escuridão. Lá fora, no acampamento, haviam imensas fogueiras e tochas, comparando com as noites anteriores. Era noite de festa. De vitória. Eu já tinha festejado o que me tinha sido permitido; agora, a armadura já se transformara em tenebroso penar. Removi a
brunea aos puxões, impaciente, e, seguidamente, todo o resto da parte inferior da pesada armadura. Desprendi-me da cota de malha e deixei-me cair no macio e confortável colchão de penas. Saboreava agora a vitória à minha maneira. De olhos fechados, e em repouso, ouvia a ensurdecedora felicidade dos meus homens; que riam, saltavam, cantavam, gritavam
salves ao nome de
Nosso Rei. Coroado, ou não,
Nosso Rei desde o falecimento de seu pai, Carlos VI de França. Abri os olhos com brusquidão, e vi o interior de toda a Tenda em meu redor. Acendi uma vela e olhei, instintivamente, o espelho que reflectia uma garota. Não mais que isso: uma simples garota com os seus dezassete anos, de cabelos oleosos escorridos pela cara, suja de terra, suor e sangue. Uma garota igual a todas essas, vítimas dos saques dos exércitos ingleses, borguinhões, portugueses e bretões que estão a acontecer pelo país. Como pode o homem ser tão cruel? Não sou homem, para poder responder.
Uns momentos depois de me ter lavado e trajado duma nova túnica de seda, entrou Pierre, da Guarda Real.
- Com vossa licença, Comandante. É vontade do Delfim, a vossa presença na Tenda Real.
Assenti, e fui escoltada por Pierre e Remi até à Tenda Real. Acreditava que o assunto fosse uma felicitação, ou até condecoração por parte do Rei, pela minha quarta vitória em seu nome, mas, rapidamente percebi que se tratava de uma conclave quando entrei na Tenda Real e me deparei com todos os Comandantes dos vários exércitos da Aliança, e ainda os principais Senhores Feudais, vassalos do Rei de França.
Estava visto o rumo que tomaria aquela conclave, e era certo que não se chegaria a consenso nenhum. Dos onze comandantes dos onze reinos aliados de França, apenas três honravam os tratados que assinaram. Os restantes esperavam pagamentos, terras, títulos e sua fidelidade era incerta. Com os Senhores, o mesmo se passava. Aquela conclave seguiria um rumo centrado em vontades próprias e na cobiça, e não a favor do Reino. Eu tinha que por um travão antes que as cartas fossem jogadas. Quando fossem, nada haveria a fazer. O Rei estava praticamente sozinho, rodeado de rémoras e serpentes. A fidelidade da maioria dos presentes era de cristal quebradiço. Inspirei fundo o silêncio cortante, e sentei-me à esquerda do Rei. Pobre Carlos, que mais ingénuo era ainda, que minha irmã Catherine.
- Joana, até que enfim que chegastes! - atirou-me o Rei, - Estávamos à vossa espera para discutir as novas manobras. - limpou as gotas de suor que se lhe formavam na testa e prosseguiu. - Sir Aramis sugeriu aproveitar, agora que o inimigo esta fraco, para o empurrar para norte e reconquistar mais algumas terras. - Concluiu, num um gesto que passava a palavra a Sir Aramis.
- Temos um total de dez mil homens aqui acampados, e mais dois mil ao comando dos capitães La Hire e Jean Ponto de Xaitrailles a dois dias daqui. Recebemos uma ave de Jean Ponto a confirmar a vitória sob o exército inglês. - Sir Aramis afiou o bigode num gesto pretensioso e continuou, - O inimigo está fraco e desmoralizado, soube de fonte segura que temem o Exército Real e a
Feiticeira que o comanda - olhou-me e riu. Revirei os olhos. - Senhores, não esperemos. Cerquemos o inimigo! Delfim, tomais-lhes as terras e os feudos para vossos Senhores Vassalos e Aliados, em forma de agradecimento e honrarias. - disse, sorrindo ao Rei, e fazendo falsa vénia.
Levantou-se um burburinho em torno da mesa, mas em uníssono, em concordância. Nada mais me fazia doer o coração que tamanha falta de honra e de dignidade.
- Senhor meu Rei, se me permitis? - levantei-me, e perguntei. Fez-se silêncio.
- Joana d'Arc. - disse o Rei, fazendo sinal para que eu falasse.
- Meu Rei, o inimigo está desmoralizado e disperso, é certo, mas tão pouco, fraco. Não são os exércitos bretões ou borguinhões que devemos temer, mas sim os exércitos ingleses. Cercar o inimigo agora, que está tão disperso, seria o nosso fim, o inimigo unificar-se-ia, e cairia sobre nós um exercito tão implacável que derrubaria toda a França. Temos aqui quase dez mil homens, é certo. Mas não vos esqueceis, meus senhores, que os melhores cavaleiros de todo o nosso exercito se encontram a dois dias de distância, e não aqui. Não vos esqueceis que em dez mil homens, temos apenas quatro mil cavaleiros. E, não podemos perder tempo agora com batalhas. Temos algo mais importante e urgente a fazer, enquanto o inimigo perde tempo a reorganizar-se e a mover o exército.
- Ireis ouvir as baboseiras de uma mulher?! - cuspiu Sir Aramis.
- Ouvi as baboseiras de quem quiserdes, então, já que foi esta mulher quem decidiu as estratégias militares que conduziram estes exércitos à vitória nas últimas quatro batalhas. - Ripostei.
Sir Aramis, Comandante do exército de Castela, olhou-me incrédulo, de alto a baixo. Ao que parece o Senhor meu Rei não teria partilhado com os seus Senhores e Aliados as origens das estratégias militares.
- Joana d'Arc, além de estar no comando de todo o exército francês... está também no comando de toda a Aliança. - clarificou o Rei.
Todos se entre-olharam, perplexos e assustados com a ideia de terem uma mulher como Comandante-Mor e Estratega. Deixei escapar um sorriso de divertimento, sem querer, e prossegui:
- Deve-mo-nos lembrar de que servimos um Rei e um Reino, e não a nós mesmos. E, por isso mesmo, a próxima manobra é coroar o Delfim. Marcharemos para Reims à alvorada.
O Rei olhou-me estupefacto.
- Perdestes o juízo, mulher?! Não quereis entrar em guerra, então como pensais ir até Reims?! - gritou Sir Aramis, vermelho de ira.
- A cavalo, Comandante. - disse eu, calmamente, num tom doce e feminino.
Explodiram gargalhadas em torno da mesa. Sir Aramis ficou roxo e a tremer de fúria.
- Que fareis então, mulher? Ameaçareis o inimigo para que nos deixe passar? Cercareis? Aonde é que difere esse plano do meu?! - berrou Sir Aramis.
- Não cercarei coisa nenhuma Sir Aramis, não sabeis ler mapas?! Não há qualquer hipótese de cerco, cercados estaremos nós!, E se atacarmos o inimigo em várias frentes, estaremos a fazer divisões perigosíssimas no nosso exército, e o dele unificar-se-á, já lho disse. Deixai de ser embirrento! - gritei enquanto virava o mapa de França na sua direcção. Já estava a perder a calma, quando Sir Aramis, finalmente, se pôs no seu lugar, e se sentou.
- Partiremos de manhã para Gien. Atravessaremos Saint Fargeau, Mézilles, Auxerre, Saint Florentin e Saint Paul. Tereis que ser rápidos, porque Henrique V de Inglaterra não tardará a enviar novos exércitos. Aproveitaremos a insegurança e a falta de moral dos exércitos dispersos e dos Senhores Feudais. Compraremos e negociaremos a nossa passagem pelas suas terras. - afirmei. - Não será difícil. Tais Senhores nada devem a Inglaterra... ou a França. Homens sem honra, são eles, que vivem para a fortuna, ambição e avidez.
- Bom... ouvistes... o Comandante! De manhã levantaremos o acampamento e marcharemos para Riem. - disse o Rei de França.
Comandantes e Senhores apressaram-se a sair da Tenda Real. Pierre e Remi vieram na minha direcção para me escoltar de volta, e em segurança, aos meus aposentos.
- Mesmo que não pretendesse escoltas não importaria, não é? Parece que não tenho escolha. - disse eu.
- Parece que não. - respondeu o velho Pierre, com um sorriso.
- Gostaria de ver esta escolta em campo de batalha, onde teria uso e razão de ser, não aqui! - brinquei.
- Se tivésseis nascido homem... Honra e dignidade não vos falta, sois astuta, inteligente e sensata. Brandis a espada, e montais melhor que a maioria dos cavaleiros... mas sois mulher... - disse Pierre, abismado com o que dizia.
- Tendes uma ideia muito errada sobre as mulheres, cavaleiro. - Confrontei-o eu, por fim.
- Vós sois diferente das outras mulheres... as outras mulheres não sabem brandir espadas, nem montar cavalos! - riu Pierre.
- Enganais-vos. Imaginai se a todas as mulheres fosse dada a
autorização de usar armadura, montar a cavalo e brandir uma espada, tal como me foi dada a mim. - disse eu com um sorriso amável. - As mulheres não sabem, e não o fazem, porque não têm autorização para o fazer. Porque, se o fizessem, seriam condenadas e mortas.
Pierre olhou-me abismado e confuso. Estava a juntar peças na sua cabeça, e a tirar conclusões do que eu acabara de dizer... e ainda bem.
- Boa noite Pierre. Remi. - disse eu, e entrei na Tenda do Comandante.