terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Era uma vez, há muito, muito tempo...


Uma menina que acordara numa fria madrugada de inverno. Acordara ou não chegara a dormir? Não sabia. Trazia o estômago às voltas e nem se atrevia a passar o olhar pelos malotes de viagem que se encontravam já embalados junto à porta de seu quarto. A menina odiava viajar. Viajar no geral, e viajar de carro em particular. Mas o pior eram as curvas, oh, se eram! Aquelas curvas apertadas das serras! Aquelas malditas e serpenteadas estradas que engolidas por pinheiros, sulcadas por giestas e gastas por nevões cruéis e chuvas furiosas, ali jaziam, sempre na mesma, que nem um purgatório! A menina suspirava, esfregava os olhos, afastava os maus pensamentos e procurava o sono. O sono estava lá, mas inalcançável. Derrotada, levantou-se e deambulou pelos silenciosos corredores, tacteando a escuridão, acompanhando fantasmas e sustendo a respiração. Sabia que se fosse descoberta a pé, novamente, durante a noite, poderia não receber prenda de natal. E mais valia não arriscar. Chegada à ala oposta da casa, entrou no Quarto das Brincadeiras, fechou a porta cuidadosamente e acendeu as luzes. Os olhos demoraram um pouco a habituar-se à luz. O relógio apontava as cinco e um quarto da manhã. Ainda dispunha de pelo menos duas horas, pensou. Não pensou duas vezes. Ligou a pequena televisão, sintonizou o canal 36 e ligou a consola que recebera semanas antes, nos anos. A menina adorava jogar, era ela agora um golfinho com estrelinhas na cabeça que saltava através de anéis de tempo em busca de obscuras verdades. Falava com uma orca quando sentiu um leve bater na porta. Estremeceu. A porta abriu-se lentamente.
- Outra noite passada a jogar? Começo a ficar arrependido de te ter oferecido essa consola. - disse o pai da menina em tom severo.
- Acordei há pouco... e não conseguia dormir... - desculpou-se a menina, enquanto desligava a consola e a televisão.
- Vai lavar a cara e escovar os dentes e veste a roupa que a mãe deixou nas costas da cadeira. Vou preparar o pequeno-almoço. - disse, altivo. - Vá, não fiques assim, sabes que o pai não gosta que durmas pouco, ainda por cima hoje espera-nos uma viagem, devíamos estar descansados... - Acrescentou num tom mais complacente. - Sete bolachas? - Sorriu.
A menina assentiu. Lavou-se, vestiu-se e arranjou-se. Já à mesa, comia o seu leite com sete bolachas Maria. Olhou a malga da irmã também com sete bolachas em exposição. Perguntava-se porque é que o pai meteria sempre sete bolachas. Todas as manhãs, ao acordar, ele perguntava que cereais desejavam as meninas. Quando escolhiam bolachas Maria em vez de um cereal, ele perguntava "quantas". A menina lembrou-se de ter respondido sempre cinco. Porquê sete? Seria superstição? Não sabia. Momentos mais tarde fizeram-se à estrada.
Não haviam passado duas horas ainda, e as serras já se faziam ver e sentir. A menina sentia-se embalada por náuseas. Cada curva acentuava a revolta das bolachas Maria contra o esófago. Até que se tornou insustentável. Pararam numa fonte qualquer no meio das serras. O ar cortava de tão frio que batia contra a pele, apesar de não se sentir vento. A água cristalina que jorrava da fonte nascente tinha gosto a gelo e fazia doer os dentes. A menina caminhou um pouco, inspirando o ar que lhe fez arder as fossas nasais de tão gelado e duro que se fez sentir. Mas vinha também misturada aquela característica fragrância a gelo, terra molhada, folhas em putrefacção e pinheiros. Cheiro a inverno das serras. De volta ao carro com a promessa de que faltava apenas uma hora, a menina acabou por suspirar e esforçou-se por se abstrair. Olhou para além da janela, olhou a paisagem salpicada de branco, de mantos de neve, pacifica, e até majestosa. Os tons de verde, castanho e branco, faziam um enorme contraste com os tristes tons negros como carvão que vestiam largas porções dos sopés das serras, onde tinham ardido os fogos do verão. A menina sentia um estranho amor-ódio por aquele lugar. Não conseguia explicar.
Viam-se agora as imponentes Escombreiras assomar por cima dos altos pinheirais. A menina inspirou fortemente. Já faltava pouco. Assim que passassem a Barroca Grande, faltariam só mais duas terras. Era assim que a menina contava o tempo que faltava. Em vez de ser em quilómetros ou minutos, era em terras. Faltavam, portanto, três terras até ao destino: Barroca Grande, Cambões e Minas da Panasqueira. As bolachas Maria davam voltas e reviravoltas no seu estômago, mas já faltava pouco. Passaram as grandiosas Escombreiras, que reflectiam o sol como milhares de vidrinhos cintilantes, em tons de laranja, ocre, cinzento e magenta. Subiram pela aldeia dos Cambões, e desceram pela aldeia fantasma das Minas da Panasqueira. O pai, a mãe, a Titi, a irmã e a menina cantavam o hino da Aldeia. A menina suspirou de alívio quando desfizeram a curva acentuada que marcava a chegada ao destino. Ouvia-se agora o ressoar do meio dia, lá ao longe, na Capela. Chegados à Eira, a menina apressou-se a sair do carro. Ainda não tinham ressoado as doze badaladas lá no alto, na Capela, já as bolachas Maria e o leite se encontravam estatelados e fumegantes nas pedras do chão da Eira.
Pobre menina, murmuravam as tias. Acudam a garota, riam-se os tios. Bebeu dois goles de água gelada à fonte da Eira. O frio desceu e acalmou-lhe o estômago.
Minhas meninas, disse, bem alto, a Avó Celeste, do cimo do Cascalhal, caminhando na direcção da menina e da irmã da menina. Depois de todos os cumprimentos, abraços, apertos de mão e beijos a todas as tias do Caminho e aos tios que lá estavam ou chegavam, recolheram-se na antiga Casa de Xisto, ao cimo do Cascalhal. Esperava-os Couves com Feijões e chouriças cozidas. A Avó Celeste sempre fizera as melhores Couves com Feijões da Aldeia. Pelo menos na opinião das meninas, que se deliciavam com aquela refeição escaldante e saborosa, que contrastava com o frio que ainda se sentia nos seus narizes e bochechas. A menina olhou a Chapa. Lembrou a vez que queimara nela as palminhas das mãos, e como o curativo foi ficar quase um dia com as mãos de molho em vinho tinto e ervas... sentiu o estranho cheiro do curativo a vinho tinto com ervas. Mas não fez caso. Deu uma dentada num fatia de broa de milho que, logo a seguir, empurrou com uma garfada de Couves com Feijões. Boca santa tinha a garota, que vomitava e ficava logo com fome, dizia-se.
Depois do almoço foi dado um passeio pela Aldeia; visitou-se família, amigos e conhecidos. Estes dois últimos que não deixavam de ser família, apenas o eram em quarto ou quinto grau, ou por afinidade.
De passagem pela Eira, a menina olhou os garotos e garotas que brincavam e corriam, sob pragas e repreensões dos tios e tias que passavam e se deparavam com tal preparo. Uma tia gritava muito por uma tal de Juliana. Oh, mãe estou só aqui a brincar com os rapazitos, respondeu a Juliana naquele dialecto característico que a menina sentia dificuldade em acompanhar, por vezes. A menina sentia pena de não brincar também com eles. Queria muito brincar, mas não conhecia as suas brincadeiras e dificilmente os compreenderia. Não tinha coragem de os abordar. E por isso, a menina, quando não estava com familiares ou com a irmã, estava sozinha. Ficava em casa ou passeava até à Fonte Cimeira, não se atrevia a ir até mais longe sozinha. Haviam lobos e lendas piores que lobos. Haviam as lendas das bruxas que dançavam à volta de fogueiras ao Porcim. Havia ainda a lenda da Boa Hora e da Má Hora... Quando lhe contavam as lendas a menina dizia, altiva, que não tinha medo e que não acreditava. Mas à noite, na cama, encolhia-se ao uivar dos lobos. E, aquando sozinha pelas ruas, olhava muitas vezes em volta em busca da Boa Hora... não fosse a Má Hora passar e a levasse...!
Quando viraram para o Cascalhal, a Ti Preciosa chamou as meninas. Elas já sabiam ao que iam. A Ti Preciosa, em paz esteja a sua alma,  era adorada pelas meninas, e a sua grande generosidade e amizade reconhecida. Enormes chocolates alemães brotavam das mãozinhas das meninas quando entraram na grande Casa de Xisto
 - Não vos esquecestes de agradecer? - perguntou a Avó Celeste.
 - Nós agradecemos. - responderam as meninas em coro com sorrisos a rasgarem-lhe os lábios.
 Quando a Capela aclamou as cinco da tarde, a família da menina dirigiu-se, como combinado, para um lanche de boas vindas em casa da Ti São. O queijo fresco de cabra que a Ti São fazia era o melhor do mundo. E aquela broa de bacalhau ainda quentinha era uma delícia. Falaram de cabritos, cabras, ovelhas e vitelas. A menina assistira nesse ano, no verão, à matança de um cabrito. O Tio Avô matara-o a sangue frio na sua Loge, coisa tenebrosa de se ver. Sabia do que falavam mas tentou não dar atenção e não fez qualquer esforço por seguir a conversa. À mesa, a Ildita e o Horacito fizeram questão que o jantar fosse na sua casa, com a sua companhia. E depois do jantar uma bela Seroa, disseram rindo e olhando a menina. A Titi foi quem se riu mais alto. A menina sorriu. Adorava as Seroas em casa da Ilda e do Horacito. O Horacito no seu acordeão e o seu pai na viola, cantavam e tocavam músicas de antigamente, passadas de geração em geração. E a menina adorava ouvir as histórias que todos contavam à volta da Estufa; histórias antigas, lendas antigas e acontecimentos antigos. Peripécias da juventude, contos antigos e até mesmo acontecimentos históricos que remetiam ás tropas de Napoleão e à ocupação árabe da Península Ibérica! A menina adorava a Lenda da Moura Encantada, e acreditava nas histórias que contavam a existência de Minas d'Ouro escondidas na região. Também adorava ver as fotografias que mostravam cronologicamente a vida daquelas pessoas que a rodeavam. E assim foi.
No dia seguinte eram-lhe reservados planos menos agradáveis. Iriam passear ás aldeias vizinhas. Fazer-se-iam à estrada a partir da Estrada Velha, passariam pelas Meãs, pelo Sobral de São Miguel, comprariam licores e casinhas de xisto em miniatura no Piódão, almoçariam no Paul, passariam Erada, Unhais da Serra e Tortosendo e brincariam depois com a neve no alto da Serra da Estrela.
No dia depois desse fariam um percurso semelhante para Sul, visitando Porto de Vacas, Dornelas do Zêzere, Alqueidão, Esteiro, Janeiros de Cima e de Baixo, visitariam a barragem de Santa Luzia e ainda Unhais-o-Velho à vinda. Para a menina não passava tudo de serras, pedras e árvores. Ainda por cima serras, pedras e árvores que ela via quase sempre duas vezes por ano. Mas que escolha tinha ela? Não tinha. Dava-se por feliz com as frequentes paragens em fontes, nascentes, miradouros e valia-lhe a Titi que carregava sempre uma mão cheia de sacos de plástico e toalhetes na sacola. 
E assim chegou a véspera de Natal. Ouviam-se diálogos banais, galinhas a cacarejar, galos a cantar, e badalos de cabras e ovelhas a passar. Era impossível conseguir dormir-se mais. A menina olhou o relógio que apontava as oito e vinte da manhã. Apeou-se da cama e sentiu o aroma doce que pairava no ar, cheirava a filhoses, a bolos e coisas boas. Na cozinha haviam Talassas, biscoitos, Esquecidos, Arroz Doce, Douradinhas, vários bolinhos, Bolo Rei, Pão Leve, doces, chocolates e Filhoses acabadas de fritar. A Avó Celeste batia os ovos da Tigelada e dizia à Ti Lurdes que as filhoses estavam atrasadas. A menina comeu uma Talassa com compota e bebeu um copo de leite. Olhou o bacalhau num alguidar cheio de água. Torceu o nariz, não apreciava Couvada, a refeição típica do jantar de véspera de Natal lá da Aldeia. Mas, ao menos, o almoço iam ser batatas fritas, que também já estavam descascadas em água num alguidar mais pequeno.
Era isso que mais entristecia a menina. Naquele lugar parecia que para se ter uma coisa boa tinha que se sofrer a dobrar por ela. E isso aplicava-se a tudo. Ás gentes e aos sítios. Até o próprio caminho até à Aldeia era tenebroso penar, que só Deus sabia o sacrifício que representava para a menina. Um pic-nic agradável no Betourel, por exemplo, requeria uma viagem de carro com uma mão cheia de curvas e um desagradável e horrível enjoo. Para um vislumbre de neve, era necessário rapar um frio rijo e cruel. Tudo tinha uma contrapartida naquela maldita Aldeia entre as serras. Uma contrapartida nada agradável ou fácil. Uma contrapartida que implicava sofrimento. E era assim que a menina via a Aldeia e as serras. As serras iam-lhe oferecendo, aos poucos, as melhores recordações e as piores da sua vida. A menina sentia um estranho amor-ódio por aquele lugar. Não conseguia explicar.
Não foi obrigada a ir à Missa-do-Galo antes da Consoada, e adorou a família por isso. Por outro lado, no dia seguinte, teria de ir à Missa-de-Natal dar um beijinho no pé do Menino Jesus. Mas todos esses pensamentos se desvaneceram quando, no fim de jantar, foram ver a Fogueira de Natal à Eira. A menina e a irmã olhavam, fascinadas, as fagulhas que subiam ao céu. Tios, tias e primos encontravam-se reunidos à volta da imensa fogueira, e, pela primeira vez desde que ali chegara, a menina não sentiu frio. Pelo contrário, sentia um confortável bafo quente a aconchegar-lhe a cara. Brincou, cantou, saltou, correu e, quando já passava da meia noite, voltou para casa. E qual foi o seu espanto ao entrar na sala e ver prendas ornamentando a base da Árvore de Natal no lugar do nascimento de Jesus! O presépio estava agora em cima de um móvel, com um jornal por baixo a defender a madeira do musgo que caia da base de cortiça. Os embrulhos foram distribuídos pelos seus destinatários. As meninas estavam felizes. Receberam o que pediram e mais ainda.
Quando a menina foi dormir já era imensamente tarde. Duas da manhã, talvez. Estava muito feliz mas também muito cansada. Lembrou o almoço de cabrito do dia seguinte, que nada gostava, a missa a que teria de ir e a tenebrosa partida para a Cidade, através das serras e das curvas, marcada para daí a dois dias. Lembrou o sofrimento que ainda a guardava. Então ouviu um uivo, lá longe, na Abesseira. Encolheu-se na cama, mas, antes de conseguir sentir medo, adormeceu.

1 comentário:

  1. Reconheci os lugares através das descrições e das referências que fazes!

    Não me pareceu nada "insânia" esta tua tirada. Vou ficar mais atento ao teu blog!

    Com amizade,
    Vitor

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