domingo, 25 de outubro de 2009

Se perguntarem por mim, digam que voei.

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  - Ansiedade? Como ansiedade?! Há dois meses que tomo Ansiten e estou cada vez pior!
Gritou Rita, indignada, encarando o olhar espantado do seu médico de família. Na verdade, haviam cinco meses que Rita não passava um único dia bem disposta, feliz e sem dores. Todos os dias se repetiam caracterizados por um mar de tortura que se estendia entre dores de cabeça, tonturas, vómitos, dores agudas no peito, palidez, queda de cabelo, má disposição, falta de memória, arritmias e taquicardias, suores, ataques de pânico, paragens de digestão, dores de barriga e sensações de desmaio. Os dias passavam e o nó na garganta tornava-se cada vez mais apertado; o buraco no peito cada vez maior e mais vazio. A vontade de viver cada vez mais ténue. Rita sentia-se a morrer.
  - Sim, ansiedade Rita! Já fizeste vários exames e está tudo bem contigo a nível físico. Estas análises mostram apenas uma alteração a nível da TSH, nada de preocupante e nada que justifique esses sintomas que dizes ter. Todos esses sintomas são de forro psicológico!
Rita baixou o olhar, acabando por cerrar os olhos, enquanto fazia pressão com o indicador o e polegar entre as sobrancelhas. Nada fazia sentido. Na verdade já fizera dois ECGs, um Raio X ao tórax, uma prova respiratória e uma prova de esforço. Todos estes exames tinham resultado dentro da normalidade. Rita suspirou.
  - Não há mais nenhum exame que eu possa fazer? - perguntou com a voz a falhar-se-lhe.  
  - Não Rita, lamento. Não tens sintomas que justifiquem outros exames. Posso é mandar-te repetires as análises à TSH e aos anticorpos para ver-mos de que se trata esta alteração.
Rita consentiu. Desistira. Que argumentos lhe eram possíveis proferir? Que mais poderia ela fazer? O médico insistia no seu diagnóstico: ansiedade.
Semanas passaram. As novas análises chegaram, revelando que Rita tinha hipotiroidismo, ou o que quer que isso fosse. O que era facto é que a cada dia que passava, tormentosamente devagar, Rita sentia-se cada vez mais fraca e mais doente. As dores de cabeça eram cada vez mais agudas. As tonturas tinham-se tornado autênticos carroceis. As paragens de digestão aconteciam agora aos pares durante a semana. As arritmias, taquicardias e dores no peito faziam-se sentir furiosas. As más disposições acompanhadas por vómitos passaram a ser uma condição e as sensações de desmaio cada vez mais eminentes. Rita chorava. Não sabia se por medo ou por angústia. Chorava, simplesmente, envolvida em seus braços, apertando-os firmemente contra o peito pungente, na tentativa de atenuar sua dor.
  - Pois... hum hum... É... hum hum... - o médico de família empunhava os papeis da análise diante de seu nariz, lendo-os atentamente. - Sim. - vociferou por fim, poisando os papeis e encarando Rita com um sorriso esboçado nos lábios. - Como te disse, não há razão para alarmes. Os valores estão um pouco elevados, mas não o sufici-
  - Doutor, peço desculpa, - interrompeu-o Dona Ana. - mas penso que, na minha opinião, estes valores deveriam ser estudados... que mais não fosse com uma ecografia tiroideia...
Dona Ana, mãe de Rita e enfermeira decorosa, acabara de perder a paciência com a negligência do médico de família. Um breve olhar entre os dois consumou-se, dando origem a um barafusto por parte do médico.
  - Sim... Claro!... Como queira, claro, podemos... sim... - barafustou enquanto rabiscava na folha a prescrição da ecografia tiroideia. - sim... pronto. Aqui tem.
Mais semanas se passaram. A ecografia veio confirmar tiroidite de Hashimoto. Confirmou tudo, mas não ajudou nada. Rita sentia-se à beira de um precipício, segura apenas num velho tronco de árvore, prestes a dar de si, a qualquer momento. O buraco de seu peito gritava, doía todos os dias. A sua cabeça parecia querer explodir. A sua dieta tivera que se resumir a líquidos, cozidos e grelhados, para evitar ao máximo paragens de digestão. Rita já se sentia num limbo entre o consciente e subconsciente. Não reparava, mas adormecia, a maioria das noites, a chorar.
Entretanto, as semanas acabaram por se transformar em meses, até que Rita acabou por consultar um endócrinologista acompanhada pela mãe.
No caminho para casa, Rita não proferira uma única palavra. Quando chegou, dirigiu-se para o quarto, sentiu uma breve tontura e deitou-se na cama. Lembrou então as palavras do médico, não contendo as lágrimas, que como que por auto-recriação, lhe correram pelo rosto. Não era certo o desaparecimento total dos sintomas com o tratamento medicamentoso, mas todos eles, ou a sua grande maioria, eram derivados do hipotiroidismo. Rita inspirou profundamente. E continuou a lembrar as palavras do médico na sua cabeça. Rita seria dependente de medicação para o resto da sua vida. As lágrimas escorriam-lhe agora duas a duas pelo rosto deitado sobre a almofada. Olhou a estante, e reparou no canto superior direito, onde se encontrava a sua colecção de livros de quando era criança, entre os quais um vasto leque de obras de Alice Vieira. Lembrou o seu livro preferido dessa altura, e leu o seu título em voz alta.
  - "Se perguntarem por mim digam que voei". - disse Rita, esboçando um sorriso irónico e deixando escorrer algumas lágrimas que ainda lhe nasciam nos olhos.
E adormeceu.

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