terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Rapaz e o Velho

Fazia muito calor naquele inicio de tarde de verão, lá nas terras secas de Salvador de Serpa. Valia aos habitantes o rio Guadiana, que, sem ele não se dariam lá nem gado nem colheitas. Sem ele, a sede levar-lhes-ia as vidas. Povo trabalhador e sofredor, aquele. Durante anos e anos enfrentaram guerra e morte, para agora servirem e reconhecerem o comandante de tal enfermidade como seu Rei. O sol torrava lá no alto, e viam-se cá em baixo os campos turvos e fumegantes de calor. Por baixo das turvas ondas de calor estavam as mulheres, que tratavam os campos, fazendo o seu trabalho, e o restante, a dobrar. Os homens camponeses tinham sido todos chamados às ruínas antigas, lá no alto de Salvador de Serpa, onde outrora estivera um majestoso e imponente castelo. Um castelo ainda mais grandioso que as próprias historias, lendas e cantigas que se fizeram dele, dizia-se.
Maldito Senhor Nosso Rei, praguejava o povo em pensamento, que não se lembrara de melhor hora para erguer o antigo castelo da mourama! E, em boa verdade, assim o era. Mas, mal tinha o povo consciência de seu árduo fado, que, acabado o castelo, era vontade do Rei erguer tal cintura de muralhas capaz de proteger Serpa durante uma guerra com décadas de cerco!
Malditas guerras!, fartava-se o povo. Serpa e Moura teriam sido ofertadas a D.Dinis I de Portugal pelo seu antigo Rei, Fernando IV de Leão e Castela, através do Tratado de Paz de Alcanises, haviam três anos e pouco. Marcara-se assim o fim da guerra com Leão e Castela, que necessidade haveria agora de erguer castelos? Povo ingénuo e sofredor, aquele.
El Rei D.Dinis partira há mais de ano e meio com a sua corte, para sul, para avançar com a reestruturação e organização do reino, códigos que seu pai lhe deixara, mas a Tenda Real ainda se encontrava erguida. Deixara em Salvador de Serpa cerca de duzentos cavaleiros, um mestre de armas e de cavalariça, o comandante da Guarda Real acompanhado de cinquenta guardas da sua casa e ainda Filipe, um filho seu, bastardo. Corriam rumores de que ao rapaz lhe seria dado o título de Senhor no ano seguinte, quando se fizesse homem, e lhe seriam dados os feudos e as terras de Serpa, e ainda uma esposa da casa de Leão e Castela.
Era sabido que o amor que D.Dinis tinha aos filhos legítimos e aos filhos bastardos era igual. Viviam todos juntos na corte e todos tinham as mesmas regalias. Na verdade, dizia-se pelo povo que o herdeiro da coroa seria seu filho predilecto e bastardo Afonso Sanches e não o seu legitimo infante D.Afonso. Santa Rainha Isabel, que assistia a tudo isto, consentida. Mas, outros tempos eram estes, em que homem não era homem, se não tivesse um bastardo ou dois.
Filipe acabava de almoçar o enorme javali que caçara essa manhã à beira do rio. O rapaz adorava caçar e praticar esgrima, adorava procurar aventuras e era seu sonho ser um nobre Senhor, reconhecido pela sua bravura em todo o reino... não tinha paciência para as letras nem para a música, ao contrário de seu pai, cuja maior paixão era precisamente a arte das letras e da música. Talvez, por isso é que o senhor seu pai preferisse Afonso Sanches aos restantes filhos, o meio-irmão era nobre e nato trovador! Afonso Sanches, era de todos os filhos, o mais parecido ao Rei. Em todos os aspectos, mas em termos físicos parecia quase um fantasma do próprio D.Dinis quando tinha quinze anos. Era bastante alto e encorpado, tinha olhos castanhos escuros, que mais pareciam azeitonas, cabelos também num tom castanho escuro, pele morena, e feições completamente fotocopiadas do rei. Seus meio-irmãos, filhos legítimos do rei, Afonso, Constança e Teresa saiam à mãe, que ostentavam, todos três, cabelos acastanhados com um tom dourado e olhos de avelã. Filipe era ruivo e tinha algumas sardas na cara, apesar de ter também algumas feições do senhor seu pai, rei de Portugal. Nada sabia de sua mãe, tal como outros seus meio-irmãos bastardos. A viver na corte estavam onze bastardos do rei contando com Filipe. Mas era sabido que mais bastardos haviam pelo reino fora.
Decidiu afastar todos estes maus pensamentos e fazer mais uma cavalgada pelas suas futuras terras. De todas as vezes que iniciava uma cavalgada descobria novos sítios. Aparelhou um garanhão e largou, com quatro guardas a cavalo, para sul, seguindo a margem do rio Guadiana. Parou passadas duas horas, para dar descanso e água aos cavalos. Estavam agora sentados à beira do rio, protegidos do sol escaldante pela sombra de uma majestosa oliveira. Filipe olhou os guardas, que bebiam água sofregamente e jorravam rios de suor pelas faces e mãos. Olhou o seu reflexo na água. Trazia vestidas finas e leves roupas de seda, mas seus guardas trajavam pesadas e escaldantes armaduras de ferro e cabedal. Ordenou-lhes que tirassem os elmos e as cotas de malha e que descansassem na sombra da oliveira. Filipe era bom rapaz mas preocupava-se demasiado consigo próprio e esquecia-se muitas vezes dos outros e do que sentiam. Felizmente, quando se lembrava, tentava remediar. E assim o estava a fazer.
Os guardas não demoraram a adormecer. Então, decidiu ir dar uma volta a pé, não se afastaria muito. Demoraria o tempo suficiente até que fizesse menos calor e que pudesse retornar a casa. Levaria consigo uma saca para apanhar amoras e outros frutos silvestres, se os encontrasse. Talvez assim ficasse com menos remorsos pelos seus guardas. E foi.
Passados quinze minutos a pé entre oliveiras, arbustos, murtas, ulmeiros, choupos e sobreiros, avistou, lá longe, um rebanho, perto de uma elevação rochosa. Poisou a sua mão esquerda no punho da sua espada, por instinto, e avançou na direcção do rebanho. Seria o Senhor de toda aquela terra. Nada teria a temer, pensou. Enquanto avançava pelo rebanho adentro em busca do pastor, ouviu um grito atrás de si, vindo lá da elevação rochosa.
 - Quem vem lá? - gritou, novamente, a voz.
O rapaz encaminhou-se na direcção da pessoa que se encontrava sentada no sopé da elevação rochosa. Quando foi chegando suficientemente perto para ver com mais nitidez, abrandou institivamente a velocidade. O velho pastor sorria-lhe amavelmente. O rapaz apressou-se a desviar o olhar. Uma cicatriz profunda e vertical ornamentava-lhe toda a face direita, provavelmente feita pelo gume de uma espada. Tinha um olhar azul cristalino, carregado de perigo. Barba e cabelo eram grisalhos e compridos. Trajava uma capa de seda negra como o breu. Tanto quanto sabia Filipe, os pastores não tinham dinheiro para usar sedas.
 - Que queres tu daqui, rapaz? - perguntou o velho pastor com um sorriso amável nos lábios.
 - Cuidado com a língua velho pastor, que falais com o vosso futuro Senhor! - irritou-se o rapaz, que logo apertou o punho da sua espada com força. O velho soltou um sorriso abafado acompanhado de alguma tosse.
 - Tendes a língua bem afiada para um bastardo! - disse o velho ainda a rir.
O rapaz desembainhou a espada e apontou-a ao pescoço do velho, que não vacilou.
 - Tende tento na língua, velho. Não vos voltarei a avisar. - disse. - Quem sois? Dizei-me já.
 - Sou Afonso de Lacerda, humilde pastor, mas pergunto-me para que vos servirá tal informação. - brincou o velho.
 - Não tenho contas a dar-vos, velho. - retorquiu Filipe.
 - Também não lhas pedi! - riu o velho.
 - Basta! A quem roubastes esse manto de seda?
 - Desonrais-me, rapaz. - disse o velho após uma curta pausa. - não pode um pastor ter um manto de seda?
 - Porque me chamais rapaz? Não sou rapaz nenhum! Para o ano serei um homem feito! - embirrou Filipe.
 - Ah, sim? Que idade tendes?
 - Tenho treze. Farei catorze na próxima primavera!
 - Não passais de um rapaz. Tendes nome?
 - Sir Filipe. - respondeu o rapaz, altivo.
 - Sir Filipe... - riu o velho - não vos foi proposto um lugar nas Ordens de vosso pai? Até me admira.
 - Foi... como sabeis? Mas recusei, não tenho nada a tratar com tais Ordens, e, muito menos, com a fé.
 - Rapaz! Que estás para aí a dizer? - chocou-se o velho. 
 - Não acredito no Papa, ou na Igreja Católica. E não lutarei por verdades que não são as minhas.
O velho ficou com um ar sério, avaliando o rapaz de alto a baixo.
 - Rapaz, pões em causa a existência de Cristo? Que verdades são as tuas?
 - Não, eu sei que Cristo existiu... mas não concordo com as guerras que se estão a travar em nome d'Ele, e do Papa, e da Igreja. Nem acredito nos milagres e nas histórias. As minhas verdades são a família, a honra, a bravura e a esperteza. - disse o rapaz, orgulhoso do seu discurso.
 - Rapaz tonto. - riu o velho. - E que é da ética? Do bom-senso? Dos dogmas? Dos princípios? Dos valores?
Filipe não percebia onde o velho queria chegar, por isso arriscou:
 - Eu não sigo nenhuma religião. Não adoro deuses.
 - E porque achais que o Cristianismo tem que ser uma religião?
 - Não é? - Filipe ficou confuso.
 - Rapaz, a quem servem os da Ordem dos Templários de teu pai?
 - As pessoas... - disse Filipe constrangido.
 - Correcto, - sorriu o velho - a Ordem dos Templários difunde e protege a palavra de Cristo. Mas toda a Ordem serve e protege as pessoas que dela precisam. Rapaz, o Cristianismo, mais que uma religião, é um conjunto de valores, dogmas, princípios. O Cristianismo é uma escolha de vida. Muitos dos nossos valores e princípios nasceram com Jesus de Nazaré.
 - Não estou a perceber...
 - Rapaz, quando Jesus de Nazaré nasceu, matavam-se homens como se matam baratas... Mulheres eram violadas, crianças escravizadas, e não durante saques ou guerras. Era assim a realidade, nesses tempos. E tu sabes, rapaz, um homem é aquilo que aprende, e que é ensinado. Se nasceres no meio de assassinos, e for essa a única realidade que conheces, assassino serás! No entanto, Jesus de Nazaré, apesar de nascido em tal realidade, negou-a. E, então, decidiu oferecer o melhor presente que alguém poderia ter oferecido à humanidade.
 - Que presente foi esse? - perguntou Filipe cheio de curiosidade.
 - Possibilidade de escolha. - sorriu o velho. - Jesus deu-nos o conhecimento da ética na sua plena forma. Para além do bem o do mal, do que é certo, e do que não é. Até então só se conhecia uma realidade, Jesus apresentou-nos a outra, para podermos escolher o nosso caminho. Jesus ensinou-nos os valores e princípios necessários à coexistência. Rapaz, que direito tens tu de matar um homem? Que direito tens tu de fazer sofrer alguém para te sentires bem? Estas são questões que nenhum outro Homem colocou antes de Jesus Cristo, rapaz. E é esta a mensagem que a Ordem existe para proteger e espalhar. Valores e moral. Proteger e ajudar quem precisa, sejam pobres, ricos, senhores ou camponeses. Ensinamentos de Cristo. É para isto que a Ordem dos Templários existe.
 - Tu és um Templário. - afirmou o rapaz.
 - Fui. Agora sou um pastor. Cumpri o meu dever, agora só quero viver em paz. - disse o velho, com um sorriso bondoso. - Vêm lá os teus guardas rapaz! Levai este cântaro de leite e este pão e dividi por vós, que ainda tendes um largo caminho até casa.
Filipe olhou o sol poente. Os seus guardas galopavam na sua direcção, haviam de ter ficado aflitos quando acordaram e não o viram.
 - Obrigado, bom Cavaleiro. Voltarei para vos visitar em breve, e me dareis sábios conselhos e instrução para me juntar à Ordem de meu pai. 
 - Darei sim, rapaz. - sorriu o velho.
Filipe esporeou o cavalo e arredou, à carga, para norte.

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